domingo, 30 de janeiro de 2011


RESENHANDO

O AMANUENSE BELMIRO

CYRO DOS ANJOS

VIVER A VIDA DOS OUTROS... Só conseguir o prazer próprio através das emoções alheias, na azáfama do dia a dia, nos pequenos prazeres cotidianos proporcionados pela agitação coletiva; seres sem vida própria. Está é uma recorrência comum na Literatura Brasileira. A estes tipos eu apelidei afetuosamente de estróinas sentimentais.
Mas quem são eles, afinal? Alguns são de bom coração porém desprovidos de fibra, como o Nazanzieno de Os Ratos, romance do gaúcho Dyonelio Machado, que passa pelas páginas desta novela correndo atrás de saldar sua dívida com o leiteiro cotidiano. Incapaz de tomar alguma atitude drástica, vai cortejando os amigos e admirando-lhes a capacidade de tirarem proveito das situações espinhosas e de saírem bem destas. Mesmo depois que a sorte lhe sorri e o bendito dinheiro lhe cai dos céus, ele imagina de noite aterrorizado, ratos roendo as notas que deixou sobre a mesa.
Outros são completamente amorais, como boa parte das personagens de Machado de Assis, notadamente o Brás Cubas das Memórias. Sem se fixar em um desejo específico, vai migrando de situação em situação, de fase em fase, rolando como as pedras e sem chegar a lugar algum. As pessoas de sua convivência, surgem, são amadas, passam, morrem, desaparecem, e a tudo isso só resta a indiferença final: "Não tive filhos..." Ou como o Bentinho de Dom Casmurro: "Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro."
Pois é do romancista mais influenciado por Machado que surge a mais perfeita tradução para um estróina sentimental. Trata-se de O Amanuense Belmiro, do mineiro Cyro dos Anjos, um dos romances mais discutidos e admirados de nossa literatura. Profundamente analítico, minuciosamente descritivo, rigorosamente ordenado em capítulos numerados e de títulos chamativos, em tudo se parece com a obra de Machado de Assis - o que o fez muito criticado por uns e louvado por outros.Como afirma Antônio Cândido:
"...enquanto Machado de Assis tinha uma visão que se poderia chamar dramática no sentido próprio da vida, Cyro dos Anjos possui, além dessas, e dando-lhe um cunho muito especial, um maravilhoso sentido poético das coisas e dos homens."

(Estratégia, in Brigada Ligeira, Martins ,1943)

BELMIRO é um amanuense (antigo nome para a profissão de escrivão) entrando nos quarenta anos, e vivendo na época do Estado Novo de Vargas. Infeliz e irrealizado, compraz-se em anotar escrupulosamente em um diário pessoal os acontecimentos do dia, o que fizeram os amigos, as novidades, as agitações, as esperanças e frustrações. Ou seja, o escrivão não tira férias.Culto e bem lido, vive de tiradas e frases de efeito:

"Grande coisa é encontrarmos um nome imponente, para definir certos estados de espírito. Não se resolve nada, mas ficamos satisfeitos. O homem é um animal definidor.'

"Tais desnivelamentos é que compõem minha vida e lhe sustentam o equilíbrio."

Na efervescência do novo regime político, Belmiro vive a agitação cultural de Belo Horizonte, a agitação política com destaque para os alvoroçadores comunistas, o corso de carnaval, as glórias literárias que nunca lhe sorriram. Fiel e dedicado aos amigos, vai sofrendo a perda e o distanciamento destes com o passar do tempo. É um diário tenso, aflitivo, por vezes poético, de uma riqueza imagética muito grande. Como ainda afirma Antônio Cândido, "Belmiro escreve porque precisa abrir uma janela na consciência a fim de se equilibrar na vida..."
As mesmas caracteristicas do mal amado escrivão são encontradas em outro romance de Cyro dos Anjos, na figura de Abdias, o velho professor que vê o tempo passando e que se acha agora sem lugar, com seus tradicionais valores postos em cheque.


quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

POEMA DO DIA


A OUTRA

FERNANDO PESSOA














Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco para, largo os remos
E, um ao outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei...
Não deixe a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
O poder ser eu que te beije
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nós recomeçar
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra.




UM POETA GAIATO


O alagoano Sebastião Cícero dos GUIMARÃES PASSOS(1867 - 1909) foi um dos parnasianos do grupo de Olavo Bilac e viveu no Rio de Janeiro à época da transição política da monarquia para a República. Com o advento desta perde seu emprego de funcionário público e torna-se adversário do regime, no que é perseguido pelo governo de Floriano Peixoto, exilando-se em Buenos Aires.
A par disto, Guimarães Passos teve uma vida agitada, dividida entre a boemia, os versos, e um casamento infeliz. No entanto, apesar das atribulações cotidianas, o poeta era um homem de humor fino, sempre fazendo blague com a própria desgraça - e a dos outros. É o que nos conta Laudímia Trotta, em sua biografia O Poeta Boêmio - Guimarães Passos.

CERTA VEZ ENTROU na Confeitaria Colombo, na Rua do Ouvidor, ponto de encontro dos poetas parnasianos e demais literatos de então. Achegando-se de um colega sentado junto ao balcão do restaurante, entabulou conversa:

- Como vai? Me paga uma cerveja aí! - ao que o outro replicou:
- Oh, rapaz! Não estás vendo que estou de luto? Perdi meu pai há alguns dias...!
- Oh, desculpa, não havia percebido... Meus sentimentos...!
E arrematou:
- Então me paga uma cerveja preta!

COM O CASAMENTO se esfacelando, atolado em dívidas, Passos estava prestes a ser despejado do lugar onde morava.
Numa noite estava junto às grades do Passeio Público com alguns colegas, enquanto um deles declamava versos para os demais, algo como:
"...Se eu pudesse expulsar a saudade que em meu peito mora!"
Suspirando, "Guima" aparteou:
- Como eu a invejo...
- Inveja a quem? - perguntou o poeta que fora interrompido.
- A saudade... Por que pelo menos ela tem aonde morar...

MAS A HISTÓRIA mais bizarra foi a do leão no zoológico. Passos e um colega estavam no Centro da cidade, esfomeados e sem um níquel. Até que um deles teve uma idéia:
- Já sei! - Vamos comer da carne que dão às feras de sua Majestade! - ou seja, "vamos ao Zoológico".
Tomaram um bonde para São Cristóvão e, lá chegando, ficaram rondando a jaula do leão, que naquele momento era alimentado por um tratador. Este, um tipo mal encarado, não gostou do assédio dos dois e ameaçou abrir a jaula da fera - o que realmente fez.
"Guima" e o outro só pararam de correr um quilômetro depois...

GUIMARÃES PASSOS morreu em 1909, em Paris, na busca para tratamento da tuberculose. Seus restos mortais foram transladados alguns anos depois para o Brasil, junto com os de outro parnasiano ilustre, Raimundo Correia.