Há exatos 100 anos, no dia 17 de novembro de 1910, nascia em Fortaleza, Ceará, a escritora, dramaturga, cronista, tradutora e jornalista Rachel de Queiroz. Mulher de convicções arraigadas e de personalidade forte, sempre teve a primazia nos mais diversos aspectos da literatura brasileira. Bem nascida, de família tradicional e estabelecida em meio ao "sol inclemente/ que sempre queimou o meu Ceará", como na música de Gordurinha, Rachel era descendente direta do tronco dos Alencar, gente teimosa e de espírito libertário que se opôs aos tiranos e às injustiças políticas de seu tempo, e cujo representante mais ilustre era o filho de Mecejana, José de Alencar, autor de Iracema, O Guarani e As Minas de Prata.
Vinda de estirpe tão ilustre, a jovem Rachel não negou o gênio forte da família e, aos 17 anos inicia-se pelo caminho da literatura; ironicamente, assim como Monteiro Lobato, através de uma carta de protesto enviada a um jornal local de sua cidade natal. Isto foi determinante para a toda a sua vida: a jovem missivista é convidada a trabalhar no próprio jornal, e é o jornalismo que será a paixão de Rachel, sobretudo: "Sempre fui mais jornalista que escritora."
Aos 20 anos, em 1930, publica seu primeiro romance, O Quinze, às expensas dos pais. As facilidades que teve em seu início de carreira não a tornaram fútil: o livro é o primeiro libelo feminino do Brasil contra a seca, a opressão, o desgoverno, a desesperança, as políticas ruins. Abraçava assim, de maneira radical e apaixonada o socialismo e a opção pelo povo sofrido de sua terra e de sua gente. Junto com A Bagaceira, de José Américo de Ameida, Fogo Morto, de José Lins do Rego(paraibanos), Vidas Secas, de Graciliano Ramos (alagoano) e Cacau, de Jorge Amado (baiano), O Quinze compõe o naipe básico do Regionalismo Brasileiro, a denúncia latente do fim da República Velha, da estagnação política e dos primeiros anos de chumbo do Estado Novo de Getúlio Vargas (apesar desta bobagem extrema dos teóricos modernistas e dos tecnocratas educacionais afirmarem que nunca houve este Regionalismo na literatura brasileira, rebatizando-o de "segunda geração modernista"....)
Como profetisa em sua própria terra, o livro foi desdenhado por seus conterrâneos. No sul do país Augusto Frederico Schmidt e Mário de Andrade impressionam-se com o livro. Em pouco tempo O Quinze ganha status de best-seller e Rachel já e uma celebridade literária. Torna-se amiga dos amigos escritores: Graciliano Ramos, Mário Palmério (seu amigo mais dileto) e Manuel Bandeira (que lhe dedicou o famoso poema Louvado para Rachel de Queiroz) serão os seus mosqueteiros pelo resto de sua vida.
Vem a consagração literária, e também as agruras, as birras: em 1932 publica seu segundo livro, João Miguel, que desagrada ao governo por sua abordagem francamente esquerdista(foi uma das fundadoras do Partido Comunista do Ceará, no ano anterior) . É fichada como "agitadora comunista" em Pernambuco. O livro também é censurado pelo próprio Partido, o que ocasiona o rompimento de Rachel. Passa a frequentar os trotskistas.
Em 1937, seu terceiro livro, Caminho de Pedras. Como insinua o título, é o mais sombrio de todos, amargo e nada simpático, escrito em plena ebulição política brasileira, na esteira dos acontecimentos de então: o surgimento do Estado Novo de Vargas, o Levante Comunista da Aliança Integralista ,o fortalecimento das ditaduras na Europa e a iminência do conflito mundial que já se desenhava no horizonte.
A reação do governo foi dura. Vargas mandou queimar em praça pública exemplares do livro, junto com os de seus colegas Graciliano, Lins do Rêgo e Jorge Amado. É presa em Fortaleza, ficando detida durante três meses. Seu primeiro casamento acaba em1939, ano em que publica um de seus livros mais queridos pelo público, As Três Marias. A esta altura já está plenamente integrada no panteão dos escritores de ouro de José Olympio e sua Editora, onde ficará até 1992.
Em 1940 conhece seu segundo marido, o médico Oyama de Macedo, com quem terá uma longa e feliz vida conjugal. Neste mesmo ano, surpreendentemente, rompe de vez com a esquerda brasileira e afasta-se da política.
Então vêm os anos de profunda dedicação ao jornalismo e à crônica. Abandona o gênero ficcional e tem intensa colaboração nos mais diversos e seletos jornais e revistas do país. Foi a época de ouro da crônica brasileira, dos mineiros Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, de Rubem Braga e de Antônio Maria. Notável o trio feminino de cronistas: Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e Cecília Meireles. Mas Rachel, fiel à sua veia jornalística, não possuía o subjetivismo ou o lirismo de Clarice e Cecília. Seu estilo de crônica é único: objetivo, profundamente observador, terno, comovido e humano, sem ser dramático ou exagerado sentimentalmente, é um achado de coisas, escrita que se fixa na apreciação de cada ser humano que desfila à sua frente, como em uma de suas melhores crônicas, Natal a Bordo.
Rachel também fez parte de outro time notável: o dos escritores-tradutores, que deram respaldo e solidez às traduções dos grandes romancistas norte-americanos e europeus de então: Pearl S. Buck, John Steinbeck, A.J.Cronin, Axel Munthe e Daphne Du Maurier, dentre outros. Gente como Manuel Bandeira, Mário Quintana, Érico Veríssimo, Moysés Vellinho e Monteiro Lobato (agora também é moda falar mal de Monteiro Lobato como tradutor...) dividia seu tempo entre a criação literária e a tradução de livros.
Em 1953 descobre uma nova paixão: o teatro. Escreve as peças Lampião e A Beata Maria do Egito. Os prêmios se sucedem: O Prêmio Saci de teatro, o Prêmio Machado de Assis (Academia Brasileira de Letras) pelo conjunto de sua obra.
Na década de 60, nova surpresa: apoia seu primo, o Marechal Castelo Branco no golpe militar de 64. Ao visitar Rachel em sua fazenda, em 1967, logo após deixar o governo, Castelo morre em um acidente aéreo, nunca explicado satisfatoriamente, até hoje.
Em 1969, próxima de completar 60 anos, nova guinada: o romance infanto-juvenil(O (Menino Mágico). Em 1975, 36 anos depois de seu último romance ( As Três Marias), retorna ao terreno da ficção, com o romance, Dôra, Doralina.
Dois anos depois Rachel de Queiroz derrubaria o último grande tabu da vida literária brasileira. É eleita a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, no dia 4 de agosto de 1977, na sucessão de Cândido Mota Filho para a cadeira 5, cujo fundador foi o poeta parnasiano Raimundo Correia e que tem como patrono o escritor mineiro Bernardo Guimarães, autor de A Escrava Isaura.
1992: seu último e bastante discutido romance ( a autora desdenhou francamente a adaptação feita para a televisão), Memorial de Maria Moura. Em 1993, como coroação de sua longa carreira, recebe o Prêmio Camões (prêmio que é alternado entre escritores portugueses e brasileiros). Ganha ainda o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores. Em 1996 ganha o Prêmio Moinho Santista, pelo conjunto de sua obra.
Rachel de Queiroz, que se manteve como atéia até o fim de sua vida, morreu em 4 de novembro de 2003, a duas semanas de completar 93 anos, em sua residência no Leblon (Rio de Janeiro), onde residia há 60 anos.