quarta-feira, 13 de maio de 2009

TERRA IGNOTA???

Apesar das radicais mudanças culturais ocorridas a partir dos anos 90 em todo o mundo, especialmente com o triunfo da informática sobre o mundo da leitura e da mídia sobre o universo da cultura tradicional – música, teatro, artes plásticas, literatura, ciências humanas – estes pináculos da cultura universal ainda subsistem em suas regras de comportamento, nos padrões estabelecidos há séculos atrás.Um quadro exibido hoje em qualquer galeria de arte talvez obedeça aos padrões modernos de subjetivismo estabelecidos pelo Modernismo, mas, em essência, ainda é a mesma arte de Michelangelo, Renoir e Picasso. Talvez a música clássica tenha encerrado seu reinado no mundo da criação artística, só nos restando as reproduções dos ícones – Mozart, Verdi, Copland e tantos outros. Mas mesmo o mais reles rap ou o mais sensaboroso hip hop ainda obedece aos mesmos padrões musicais de sempre. Ou seja: tudo tem regra. Seja Filosofia, Matemática, Artes Cênicas, Esporte – todos têm regras que são adotadas e respeitadas.

                        Por que então só a Literatura é desrespeitada neste sentido? Não somos terra ignota, ou seja, não somos uma barraca de lona que se muda a toda hora e da qual se faz o que se desejar. O mais terrível é que esta bandalha procede justamente de quem menos se espera: os editores e os escritores contemporâneos.

                        Não é nenhum ideário; muito pelo contrário, são regras estabelecidas, inclusive com fins didáticos e escolares. Refiro-me às classificações de gêneros e estilos que balizam e definem a Literatura em geral.

Assim, temos o romance, o conto, a novela e a crônica como principais expoentes da ficção, cada um com sua idiosincrassias e com suas características. O romance é uma narrativa longa, - 100 páginas em diante - com uma personagem principal e várias paralelas, podendo abordar situações afetivas ou amorosas, ou não; é capitular, podendo dividir-se em partes, ao gosto do autor. É narrado na primeira ou na terceira pessoa. Mesmo que não haja um antagonista em carne e osso para opor-se ao protagonista, situações adversas podem substituí-lo a contento. E, finalmente, a ambientação espaço-temporal é a marca registrada do romance. Ah, sim: o romance pode ser épico, de cavalaria, clássico, indianista, regional, modernista, realista, naturalista, policial e muito mais.

E temos a novela( não confundir com o folhetim eletrônico exibido nas televisões de todo o mundo, embora os dois partam do mesmo princípio e tenham a mesma origem etimológica: novelo, aquilo que vai se  desenrolando). Esta é uma narrativa de fôlego curto, em geral não chega a 200 páginas. Caracteriza-se pela quase ausência de personagens. Na verdade, funciona assim: uma personagem tem um problema a resolver. Ou seja, o enigma, o soturno, o problemático, o insolúvel e o pesadelo predominam nesta forma magnífica que nos deu algumas obras-primas como Os Ratos (Dyonélio Machado), Noite (Érico Veríssimo), Acusado de Homicídio (José Louzeiro) e tantas outras. Não é um estilo de narrativa alegre, não há descrições exuberantes da natureza como nos livros de Alencar, nada de flertes amorosos ou sublimes idealizações, apenas o roto cotidiano. Ou aquele pesadelo do qual não se consegue despertar.

                        O conto é uma narrativa curta, de no máximo 15 páginas (embora haja algumas exceções históricas, como O Alienista, de Machado de Assis, com mais de 30 páginas) Nele também as personagens podem ser, até certo ponto, secundárias. O que conta é o desdobramento espacial ou temporal, ou os dois combinados, incidindo sobre as personagens da narrativa. Em geral, quase imperceptivelmente, todo conto é opinativo. Ou seja, o autor mais do que narrar uma simples história, quer expressar alguma verdade através dos acontecimentos do conto.

                        A crônica é um instantâneo, um retrato do momento, uma tentativa de se eternizar a fugacidade da vida, razão pela qual os grandes da era da crônica carioca, como Rubem Braga (principalmente!), Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, entre tantos, utilizaram um misto de prosa poética e observação jornalística para focar, de uma forma minimalista e profundamente afetiva, o cotidiano do “homem comum” de Copland.

Ora, os editores atuais têm abolido a distinção entre romance e novela. Na verdade, eles sempre tiveram esta dificuldade. Ousadamente afirmo que nunca considerei os livros de Kafka como romances, para mim todos eles são novelas, pelas razões que apontei acima. Um exemplo atual: a recente  reedição de À Beira do Corpo, de Walmir Ayala, categorizado como romance. O trágico idílio da adúltera Bianca em nenhum momento obedece aos pressupostos de um romance tradicional.

                        Acredito em parte que este amalgamento deva-se à confusão idiomática provinda das traduções dos autores norte-americanos. Estes, sempre na contramão do mundo, não distinguem camelo de dromedário, usam a palavra camel para designar as duas espécies. Diferenciam o crocodilo de sua forma nacional, o aligátor, mas não fazem o mesmo com o nosso popular jacaré – chamado por eles de cayman ou mesmo aligátor.

                        Da mesma forma, não fazem distinção entre novela e romance. Para as duas formas só há o termo novel, traduzido entre nós como romance – seja novela ou romance. Curiosamente só fazem a distinção quando se trata do romance policial, adotando a forma francesa roman noir.

                        Do lado dos escritores, a heresia moderna está na distinção entre conto e crônica. Sem espaço para grandes publicações na área do romance, os contistas brasileiros proliferam em antologias, seletas, blogs, zines e o que mais vier. É tudo muito engraçadinho, moderno, alternativo, socialista, colagem, bricabraque, parangolé, exercício de imaginação, flash, tudo meiooswaldandradiano ou leminskiano – o que vale é ser antena. Nada a ver com a arte suprema da Literatura – o conto. Não tem corte, sangue, tutano, essência – todo mundo um pouco Robbe-Grillet. O problema é quando estamos diante de uma crônica que se pretende conto. Há algum tempo atrás – não sei se ainda escreve lá – a Heloísa Seixas publicava na última página da revista Domingo/JB uma seção chamada Contos Mínimos. Na verdade, crônicas pessoais, momentos e reflexões. Difícil para nós, professores de Letras, fazer os alunos entenderem tal confusão. 

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